Entrevista com Léa Fagundes
sobre a inclusão digital
Pioneira no uso da informática educacional no Brasil, Léa
Fagundes cobra políticas públicas para o setor e defende a ajuda mútua entre
professores e alunos.
A sala de informática do Laboratório de Estudos Cognitivos da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) abriga, entre vários
computadores de última geração, alguns equipamentos sucateados. Embora não
sejam tão antigos, esses micros parecem pré-históricos perto dos demais. A
comparação entre as máquinas ajuda a perceber a rapidez vertiginosa com que a
tecnologia se renova.
Nesse ambiente hi-tech, instalado no Instituto de Psicologia
da UFRGS, a professora Léa da Cruz Fagundes recebeu a reportagem de ESCOLA para
esta entrevista sobre inclusão digital. Precursora do uso da informática em
sala de aula no Brasil, a presidenta da Fundação Pensamento Digital, de Porto
Alegre, tem alcançado resultados animadores com as experiências que desenvolve
em comunidades carentes do estado. Elas mostram que crianças pobres, alunas de
escolas públicas em que não se depositam muitas expectativas, têm o mesmo
desempenho que as mais favorecidas quando integradas no ciberespaço.
Segundo a especialista, o caminho mais curto e eficaz para
introduzir nossas escolas no mundo conectado passa pela curiosidade, pelo
intercâmbio de idéias e pela cooperação mútua entre todos os agentes envolvidos
no processo. Sem receitas preestabelecidas e os ranços da velha estrutura
hierárquica que rege as relações entre professores e estudantes.
Léa defende a disseminação de softwares livres, sem custo e
de fácil acesso pela internet. Consultora de programas federais que visam
ampliar a inclusão digital nas escolas brasileiras, a professora pede mais
seriedade à classe política: “Os projetos são iniciados e interrompidos
periodicamente, pois as sucessivas administrações não se preocupam em dar
suporte e continuidade a eles”.
O que a senhora diria a
um professor que nunca usou um computador e precisa incorporar essa ferramenta
em sua rotina de trabalho?
Que não tenha medo de errar nem vergonha de dizer “não sei”
quando estiver em frente a um micro. O computador não é um simples recurso
pedagógico, mas um equipamento que pode se travestir em muitos outros e ajudar
a construir mundos simbólicos. O professor só vai descobrir isso quando se
deixar conduzir pela curiosidade, pelo prazer de inventar e de explorar as
novidades, como fazem as crianças.
Como deve ser uma
capacitação que ajude o professor a se adaptar a essas novas exigências?
É fundamental que a capacitação ofereça ao professor
experiências de aprendizagem com as mesmas características das que ele terá de
proporcionar aos alunos, futuros cidadãos da sociedade conectada. Isso pede que
os responsáveis pela formação se apropriem de recursos tecnológicos e
reformulem espaços, tempos e organizações curriculares. Nunca devem ser
organizados cursos de introdução à microinformática, com apostilas e tutoriais.
Esse modelo reforça concepções que precisam ser mudadas, como a de um curso com
dados formalizados para consultar e memorizar. Em uma experiência desse tipo, o
professor se vê como o profissional que transmite aos estudantes o que sabe. Se
ele não entende de computação, como vai ensinar? Aprender é libertar-se das
rotinas e cultivar o poder de pensar!
Que competências os
educadores devem adquirir para utilizar com sucesso os recursos da informática?
Os professores em formação necessitam desenvolver
competências de formular questões, equacionar problemas, lidar com a incerteza,
testar hipóteses, planejar, desenvolver e documentar seus projetos de pesquisa.
A prática e a reflexão sobre a própria prática são fundamentais para que os
educadores possam dispor de amplas e variadas perspectivas pedagógicas em
relação aos diferentes usos da informática na escola.
Onde o professor pode
buscar informações sobre inclusão digital?
Ele pode visitar sites e participar de grupos de discussão.
Consultar revistas especializadas e cadernos especiais dos jornais também ajuda
muito. Outro caminho é buscar conhecimentos mais específicos com estudantes de
escolas técnicas ou de cursos de graduação em informática e ouvir os próprios
alunos.
É comum encontrar
estudantes que têm mais familiaridade com a informática do que o professor.
Como tirar proveito disso?
Transformando o jovem em um parceiro do adulto. Quando isso
acontece, a relação educativa deixa de ser hierárquica e autoritária e passa a
ser de reciprocidade e ajuda mútua. O educador não deve temer que o estudante o
desrespeite. Ao contrário, o adolescente vai se sentir prestigiado por
partilhar sua experiência e reconhecer a honestidade do professor que solicita
sua ajuda. Esse fato é determinante para a criação de um mundo conectado.
A senhora coordena programas
ligados à inclusão digital em escolas públicas. Que lições tirou dessa
experiência?
Na década de 1980, descobri que o computador é um recurso
“para pensar com”, e que os alunos aprendem mais quando ensinam à máquina. Em
escolas municipais de Novo Hamburgo, crianças programaram processadores de
texto quando ainda não existiam os aplicativos do Windows, produziram textos de
diferentes tipos, criaram protótipos em robótica e desenvolveram projetos
gráficos. Hoje, encontro esses meninos em cursos de ciência da computação,
mecatrônica, engenharia e outras áreas. Na Escola Parque, que atendia meninos
de rua em Brasília, a informática refletiu na formação da garotada, melhorando
sua auto-estima e evidenciando o desempenho de pessoas socialmente integradas.
Alguns desses garotos foram contratados como professores e outros como
técnicos.
Os alunos da rede
pública têm o mesmo desempenho no uso da informática que os de escolas
particulares e bem equipadas?
Sim. A tese de doutorado que defendi em 1986 me permitiu
comprovar o funcionamento dos mecanismos cognitivos durante a construção de
conhecimentos. Nos anos 1990 iniciei as experiências de conexão e confirmei uma
das minhas hipóteses: as crianças pobres consideradas de pouca inteligência
pelas escolas, quando se conectam e se comunicam no ciberespaço, apresentam as
mesmas possibilidades de desenvolvimento que os alunos bem atendidos e
saudáveis.
A educação brasileira
pode vencer a exclusão digital?
Há excelentes condições para que isso aconteça. No Brasil já
temos mais de 20 anos de estudos e experiências sobre a introdução de novas
tecnologias digitais na escola pública. Esses dados estão disponíveis. O
Ministério da Educação vem criando projetos nacionais com apoio da maioria dos
estados, como o Programa Nacional de Informática Educativa (Proninfe) e o
Programa Nacional de Informática na Educação (Proinfo). Muitas organizações
sociais e comunitárias também colaboram nesse processo.
O que mais emperra o uso
sistemático da informática nas escolas públicas?
A falta de continuidade dos programas existentes nas
sucessivas administrações. Não se pode esperar que educadores e gestores tomem
a iniciativa se o estado e a administração da educação não garantem a infra-estrutura
nem sustentam técnica, financeira e politicamente o processo de inovação
tecnológica.
Como o computador pode
contribuir para a melhoria da educação?
Inclusão digital não é só o amplo acesso à tecnologia, mas a
apropriação dela na resolução de problemas. Veja a questão dos baixos índices
de alfabetização e de letramento, por exemplo. Uma solução para melhorá-los
seria levar os alunos a sentir o poder de se comunicar rapidamente em grandes
distâncias, ter idéias, expressá-las como autores e publicar seus escritos no
mundo virtual.
Nossas escolas estão
preparadas para utilizar plenamente os recursos computacionais?
A escola formal tem privilegiado essa concepção: é preciso
preparar a pessoa para que ela aprenda. Mas o ser humano está sempre se desenvolvendo.
Assim, as instituições também estão constantemente em processo. Por isso, a
escola não precisa se preparar. Ela começa a praticar a inclusão digital quando
incorpora em sua prática a idéia de que se educa aprendendo, quando usa os
recursos tecnológicos experimentando, praticando a comunicação cooperativa,
conectando-se. Mas algumas coisas ainda são necessárias. Conseguir alguns
computadores é só o começo. Depois é preciso conectá-los à internet e
desencadear um movimento interno de buscas e outro, externo, de trocas. Cabe ao
professor, no entanto, acreditar que se aprende fazendo e sair da passividade
da espera por cursos e por iniciativas da hierarquia administrativa.
Existe um padrão ideal
de escola que usa a tecnologia em favor da aprendizagem?
Não é conveniente buscar padrões. Como sugeria Einstein,
quando se trata de construir conhecimento é mais produtivo infringir as regras.
O primeiro passo é reestruturar o espaço e o tempo escolares. Devemos dar
condições para que os estudantes de idades e vivências diferentes se agrupem
livremente, em lugares próximos ou distantes, mas com interesses e desejos
semelhantes. Eles vão escolher o que desejam estudar. Essa liberdade definirá
suas responsabilidades pelas próprias escolhas. Os professores orientarão o
planejamento de forma interdisciplinar. Isso tudo é possível com o registro em
ambiente magnético, que é de fácil consulta. Toda a produção pode ser publicada
na internet, intercambiada e avaliada simultaneamente por professores de
diferentes áreas.
Qual é sua avaliação
sobre a proliferação de centros de educação a distância?
Nestes tempos de transição vamos conviver com projetos
honestos e desonestos, alguns bem orientados e outros totalmente equivocados. O
pior dos males é a voracidade do mercado explorador da educação a distância.
Espero que a própria mídia tecnológica dissemine informações para o público
interessado ter condições de analisar esses centros. É importante discriminar
os cursos consistentes dos que “vendem ensino”, ou seja, que reproduzem o
ensino da transmissão, fora de contexto, em que o aluno memoriza sem
compreender.
Léa da Cruz Fagundes
Gaúcha, com 58 anos de magistério, a coordenadora do
Laboratório de Estudos Cognitivos do Instituto de Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul dedica-se há mais de 20 anos à informática
educacional. Psicóloga com mestrado e doutorado com ênfase em informática e
conferencista internacional requisitada, Léa Fagundes preside atualmente a
Fundação Pensamento Digital, organização não governamental que dissemina a
computação entre populações carentes.
Fonte:http://www.educacaoadistancia.blog.br/entrevista-com-lea-fagundes-sobre-a-inclusao-digital